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O DOJO QUE NASCEU DUAS VEZES |
Era a Primavera do ano de 1978. - Oh, pai, mas eu não lhe dava despesa nenhuma, eu fazia o ginásio sozinho. Ele riu-se e gozou um pouco, mas eu conheço-o bem: nunca resiste a um desafio. Além disso, havia qualquer coisa naquela proposta que lhe interessava... Aquele sorriso dele revelava uma carta qualquer escondida na manga. E concordou: - Ah, sim? Fazes tudo sozinho, então 'tá bem, vamos lá a isso. Amanhã, vou mandar vir uma camioneta de areia e tu passas a areia toda da estrada cá para cima. Desde pequenino andei sempre no meio das obras, mas nunca me tinha apercebido de quantas pás de areia tem um camião de 5 m³. E, passar aquela areia toda, pá a pá, da estrada para o terraço que ficava 4m mais acima, vou-lhes contar!... - E só aceito que o faças se, depois de começares, nunca parares para descansares as costas até a areia estar toda lá em cima - acrescentou o meu pai com um sorriso - e quero pazadas enformadas, que a areia não é para espalhar, ouviste!? Era uma prova de fogo, bem o senti. E não era meu feitio desistir. As horas de reflexão agarrado à pá despertaram-me o engenho - de modo que a segunda camioneta de areia (a primeira foi só dentre muitas mais) já foi içada por meio de uma tremonha feita de um tronco de pinheiro, que ele me ajudou a fazer. E, assim, com a ajuda de uns pedregulhos e alguns sacos de cimento lá se fizeram os caboucos. - Já não falta tudo - pensava eu - mais um mesito ou dois e o dojo 'tá pronto. Mas qual o quê?! O velhote obrigou-me à cumprir a promessa à letra. Afinal descobri que tinha mesmo de fazer tudo, até os tijolos. Arranjou uma forma metálica e ensinou-me a fazer blocos de cimento: muita areia, um pouco de cimento e umas borrifadelas de água; depois calcar tudo muito bem, com um pilão, desmoldar com cuidado, pôr a secar ao sol e... vamos ao próximo. Com a prática fui melhorando a técnica. Acabei por fazer blocos que deram para renovar as paredes de todos os armazéns lá da quinta e... se mais armazéns houvera, mais fizera. à laia de compensação fui "promovido" a servente e o meu pai assumiu as funções de pedreiro, no obra do dojo. Ainda bem, porque fazer paredes direitas não é tão simples quanto parece e rebocar ainda é um bocadinho mais difícil. Acima de tudo não acreditem nas aldrabices dos
meteorologistas - o verão mais quente e mais longo de que há memória,
foi o de 1978! E se algum deles vos disser outra coisa, mandaem-no ter
comigo que eu convido o tipo a trocar, durante três meses, o gabinete
cheio de computadores por baldes de massa às costas. Bom, finalmente, lá para fins de Setembro... "Ta-ta-tamm!" Tudo prontinho, com telhado e tudo. Bem, quase... faltava só o soalho que teria de ser de madeira, claro está. E foi então que eu apanhei uma das maiores desilusões da minha vida: fui informado que a verba não chegava para o soalho e que, além disso, o que estava a fazer mesmo falta lá na quintarola era um armazém para a palha e um estábulo para as ovelhas. Compreendi. Ou melhor, não compreendi mas tive de aceitar, pois claro. A quinta afinal não era minha e a tal conversa do "antigamente" e do trabalho esforçado dos jovens dos anos 30, não deixava de ser verdade. O facto de estarmos em 1978, era apenas uma diferença de meio-século e, afinal, o mundo não mudara assim tanto em 50 anos, pelo menos por aquelas bandas. Encarei a coisa o melhor que pude. Entendi-a como uma lição bem dura: se eu soubesse desde o princípio que o dojo ia ser um estábulo teria trabalhado com o mesmo entusiasmo? Certamente que não!... Aprendi que são os sonhos, mais do que a força física, que movem as montanhas. Com o passar do tempo deixou de me magoar tanto ver o dojo-estábulo cheio de fardos de palha. Habituei-me à ideia e ao fim de uns anos até já me conseguia rir da situação. Depois, casei-me, saí de casa dos meus pais e passei a visitá-los mais raramente. Porém sempre que lá entrava media, a passos de zen-kutsu-dachi, a largura e o comprimento do "meu dojo" e pensava para comigo: - Fui pouco ambicioso. O comprimento é exíguo. Se eu transformasse estes 8m em largura e arranjasse aí uns 16m de comprimento, isso sim, já seria um bom dojo. Mas logo uma ovelha me vinha roer os cordões dos sapatos, lembrando-me que aquela casa não era minha e eu ia-me embora meio resignado. Cabe aqui dizer que os meus ancestrais, tanto da linha materna como paterna, sempre foram pessoas ligadas ao campo e à terra. Poucas flores havia lá no quintal, mas mesmo assim não faltava nenhuma côr nem matiz. O verde escuro das folhas de milho, contrastava com a cabeleira loira das maçarocas. O castanho avermelhado do tronco da cerejeira com os seus raminhos finos e as suas folhinhas bem desenhadas, mal escondia os pontinhos vermelhos das cerejas. E, mais ao lado, a figueira com o seu tronco gordo e macio, os ramos pensativos pela carga dos figos maduros roídos pelos pardais gulosos, seguravam grandes parras espalmadas como milhares de mãos vegetais. Foi por isso que, quando a teimosia-do-dojo-no-fundo-do-quintal me voltou a atacar, isto já na última década do século XX, eu senti certa relutância em transformar aquela quinta numa imitação de um paradisíaco jardim zen. Teria eu coragem de substituir os feijoeiros por bonsais? Lembrei-me então de algumas imagens de “Les Arts Martiaux” o belo filme e livro de Michel Random: dojos rústicos, com camponeses de cara calejada treinando boken, os filhos meio sujos sentados no chão a observarem e... uma galinha a passar. Recordei também das 3 máximas de Mestre Murakami que pusera em prática durante toda a sua vida:“Travail, travail et travail”. O trabalho era a sua forma de alquimia. Era o trabalho que servia de crivo para separar os preguiçosos dos diligentes. E, para os poucos que ficavam, era ainda o trabalho que lhes transformava os defeitos (o chumbo) das suas mentes, na dignidade e correcção de atitude e comportamento (o verdadeiro oiro). Gostaria o Mestre que um dojo que lhe fosse dedicado se visse rodeado de meras plantas ornamentais? Ou será que apreciaria mais uma bela sopa, cozinhada com legumes frescos colhidos ali ao lado? Falei de novo ao meu pai no dojo. Mas desta vez falei-lhe de um local de trabalho, ao lado de outro local de trabalho. E ele não sorriu. Respeitou a ideia e a construção recomeçou. Dia após dia, trabalhou a meu lado até ao limite das suas forças e a minha mãe (que nunca gostara que eu praticasse Karate) acompanhou-nos. Muitos outros discípulos se nos juntaram . O antigo comprimento do dojo acabou por tornar-se a largura e a altura teve de aumentar, para manter a proporção que a tradição recomendava. Para forrar o tecto colhemos, à catana, milhares de canas que foram depois pacientemente descascadas, presas em painéis suspensos por inviséiveis cabos de aço. O soalho foi pregado sobre barrotes, segundo o método recomendado por Mestre Murakami, para assegurar que as tábuas de pinho amortecessem as quedas. O grande janelão do fundo abre-se sobre o quintal, à espera que o meu sonho de juventude - praticar Kyudo - acabe por se materializar, nem que seja lá mais para o ocaso da vida. Muitos dojos de homenagem ao Mestre Murakami haverá pelo mundo fora e queira Deus que assim seja, pois não foi ele o grande pioneiro do ensino do Karate-do na Europa? Mas este, este pelo menos, sei que respeita com pureza, dos alicerces ao tecto, a mensagem que o Mestre nos legou: Trabalho! Foi esse trabalho que deu corpo e alma ao sonho de um jovem praticante de Karate. Foi ele que permitiu que se edificasse essa improvável ponte entre o camponês da Caparica e o japonês dos antípodas. Foram as mãos do meu pai de nascimento que deram forma ao dojo do meu pai por adopção. E o dojo que nasceu duas vezes, só podia ser chamado Dojo Murakami da Caparica.
José Patrão, 5º Dan
Artigo originalmente publicado no Boletim do Shotokai de Portugal de Julho 1993. Revisto em Julho de 2012 |
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